[Relato Pessoal] REFLEXÕES SOBRE PLENAMENTE SER


Nos últimos dias, por alguns motivos, voltei a pensar em certos assuntos que sempre me intrigaram muito. Sempre fui leitora assídua de artigos e diversas discussões a cerca das questões de gênero, porque desde muito cedo percebi que havia algo de errado comigo, e é um pensamento que de tempos em tempos me volta à mente, mas em meio à essas leituras, pude descobrir que não há nada de errado comigo, o grande problema é o sistema em que estamos inseridos.


Definitivamente não me enxergo como um ser binário.


Nenhuma definição binária de gênero me contempla, mas é certo que um dos polos (e a linha entre os mesmos é vertical, e não horizontal) nos é imposto assim que é descoberto nosso sexo, ainda durante a gestação.
Acontece que me fiz duas perguntas que fundamentalmente motivaram a necessidade de externar a reflexão que me proponho a fazer:

1 – Somos ensinados a ficarmos divididos nas mais diversas polaridades existentes e, entre elas, o ser feminino e masculino, mas quão diferente eu seria (em termos de gostos, afinidades, etc) se tivesse nascido do sexo oposto? O que isso diria sobre minha personalidade? Claro que minha visão de mundo é totalmente influenciada pela maneira com que fui criada e tratada por ser uma fêmea, mas será mesmo que se desde o início minha socialização fosse a outra, eu seria menos fã de Lady Gaga, gostaria mais de futebol, seria menos tímida ou criativa, trataria meus pais de maneira diferente?

2 – O que, exatamente, meu comportamento sexual diz sobre minha identidade/personalidade? Por que a necessidade de defini-la? Será que se eu fosse uma pessoal mais liberal sexualmente, eu seria mais competente no trabalho? Se homo ou hétero, seria melhor cantora ou compositora? Teria mais ou menos dificuldade com exatas? Teria um gosto musical diferente? Como isso afetaria ou afeta meu senso crítico?

Pra muitos, pode parecer óbvio, mas ainda é um assunto que me causa um pouco de dor, e senti vontade de externar isso agora.


Por muitos anos na minha adolescência eu senti uma imensa culpa por não ser a menina que meus pais, ou que as pessoas ao meu redor esperavam. 

Foto encontrada no google images. "Meninas brincando"

Eu observava o comportamento de outras garotas. Eram bonitas, delicadas, simpáticas e extrovertidas, e eu queria ser uma delas, porque era isso que eu deveria ser... mas sempre parecia ter algo de errado. Os gostos não batiam, os assuntos não batiam, e eu sentia que, de alguma forma, não era bem-vinda nesse universo feminino, por mais que gostasse de algumas coisas. Lembro que não gostava muito de “barbies” ou “susies”, mas pedia para os meus pais comprarem pra brincar com minhas amigas, e sempre que podiam, eles compravam alguma mais baratinha.

Eu costumava tatuar e raspar o cabelo das minhas bonecas, e quando brincava sozinha, algumas delas eram lésbicas, agentes secretas, empresárias, lutadoras etc. Minha mãe não me deixava ter bonecos pra não me incentivar a formar casais ou algo do tipo, mas minhas amigas os tinham, e as historinhas das brincadeiras era sempre uma novela mexicana - chatas pra caramba -, e aquele momento constrangedor quando o “mocinho” e a “mocinha” se beijavam. Era muito mais legal brincar de boneca sozinha.

Por outro lado, eu também observava os meninos, e sempre achei o universo deles muito mais interessante. Cheio de ação, fantasia, histórias sobre coragem, liderança, ser inteligente. Sempre amei histórias de heróis. Era fascinada pelos “Power Rangers”, especialmente o vermelho, porque ele era o líder, mas nas brincadeiras eu sempre era a rosa – a namorada no líder -, ou quando tinha uma outra menina mais bonita brincando, aceitava ser a amarela. De qualquer forma, era muito mais legal brincar com os meninos, a não ser quando as brincadeiras começavam a ficar muito agressivas. Quando eu me manifestava contra, era porque eu era uma menina, e “menina é fresca assim mesmo”.

Foto encontrada no google images. "Meninos brincando"

Eu não podia pertencer a esse universo também, porque sempre que algo me parecia errado ou fora da minha vontade, meus amigos manifestavam um certo desapontamento, porque “menina é assim mesmo”. Eu não podia pertencer a esse universo, porque qualquer resquício de feminilidade que havia em mim, me denunciava como uma impostora, e menos digna de estar ali. Senti isso sobretudo entrando na puberdade. Sempre tive pernas grossas, quadris largos e cintura fina, e quando meus amigos começaram a perceber essas formas – que eu tentava esconder usando roupas largas – eles começaram a fazer apostas entre si, de quem tinha “coragem” de passar a mão nas minhas partes íntimas, ou quem tinha “coragem” de abaixar as calças na minha frente. Mas eu não queria que eles deixassem de ser meus amigos... isso era brincadeira de menino, afinal. Se eu quisesse ser um deles, eu deveria tolerar. Eles são assim... Não tem problema. Por isso, mais ou menos aos 10 anos, as meninas começaram a comentar que eu era “meio puta”.


Foi quando eu descobri que ser uma menina, era como uma maldição.


Lembro que sempre senti uma solidão imensa, e uma estranha sensação de que as pessoas no geral não gostavam de mim. Nunca havia me sentido a vontade por muito tempo, a não ser quando estava sozinha, e livre de julgamentos. Tive poucos amigos ou amigas, e eles geralmente eram facilmente levados embora por outros amigos mais interessantes. Me sentia uma pessoa errada. Eu não era uma garota digna de ser uma garota, e jamais seria um garoto. De qualquer lado, eu era um ser incompleto.

O contato com um ser espiritual me ajudou muito nessa época, porque Deus pra mim era como um amigo imaginário. Um ser com quem, no silencio, eu poderia ser eu mesma sem medo, eu era alguém interessante e podia expressar qualquer coisa. Em determinado momento, eu senti que Ele também falava comigo, e de todas as minhas orações, desde os 7 ou 8 anos de idade, eu me lembro de pedir fervorosamente por uma pessoa a qual eu poderia chamar de amigo. Anos depois, conheci uma pessoa que mudou minha vida completamente, e eu considero que foi a resposta das minhas orações e que comecei a viver melhor desde então. Não sinto saudade de praticamente nada antes de conhece-lo. Felizmente, essa pessoa foi a que eu escolhi me casar, mas esse excesso de apego nos foi também nocivo em determinado momento, só que essa já é outra história.

O mundo pode dizer que não, mas eu também sofria muita chacota na escola quando fazia qualquer manifestação da minha fé, e isso também me feria e retraía muito. Fiz diversas coisas que não queria fazer pra me sentir “parte” da galera, e isso só fodeu ainda mais minha cabeça. Não é atoa que acabei sofrendo com ansiedade e depressão mais tarde. Infelizmente, até hoje ainda sou tratada como uma idiota em determinados espaços por não ter gosto por costumes “da galera” ou típicos “de rolê”. Só que hoje eu sorrio, aceno, e mando um sincero foda-se mentalmente.

Com isso, eu não quero dizer que sou uma pobre coitada e que minha infância foi um lixo. Até porque, tive o imenso privilégio de ter pais mais do maravilhosos, uma família super estruturada que nunca me deixou faltar absolutamente nada. Nunca tive luxos, morei a vida toda em bairros simples, estudei de graça em uma boa escola, e meu pai particularmente sempre me incentivou e me apoiou nas minhas escolhas. Tive uma ótima educação, apesar da dificuldade de aprendizado e de, com certeza não ter a mínima chance de competir nos vestibulares da vida com alguém de estudou em colégios de elite, e apesar de ter começado a trabalhar relativamente cedo pra conseguir pagar meus cursos e a faculdade, não posso reclamar de absolutamente nada nesse sentido. Mas isso também não quer dizer que não estive à margem dos diversos padrões violentamente (tanto psicológica quanto fisicamente) impostos na nossa sociedade doente.

Voltando à linha cronológica, quando mais “mocinha”, comecei a andar com mais meninas, e ficar um pouco mais à vontade, mas aí começaram as pressões pra “me arrumar mais”, porque eu até que era bonita, mas como os meninos iam se interessar por mim se eu não me arrumasse?


Eu não conseguia expressar na época, mas eu apenas não queria que os meninos se interessassem por mim. Sobretudo, porque eu sabia o que isso significava.


Eu tinha meus “crushes”, mas eu gostava da paixonite, de escrever poemas no caderno, pensar na pessoa ouvindo músicas românticas, e só. Não era sobre a pessoa, era sobre as sensações que ela me proporcionava, e eu definitivamente não tinha necessidade ou vontade alguma de tornar aquilo físico. Fui pressionada várias vezes a “ficar” com meninos quando eu não queria. Meu primeiro beijo foi uma das experiências mais estranhas da minha vida, porque eu acabei me apaixonando pelo mesmo garoto que minha melhor amiga, e o filho da puta disse que se eu não “ficasse” com ele, ele ficaria com a minha amiga. No final da história, ele ficou com as duas, e ela parou de falar comigo por alguns meses.

Pra uma pessoa solitária como eu, isso gerava um sofrimento enorme. Eu tentava falar com ela de todas as maneiras, mandava bilhetes implorando perdão, chorava escondido no fundo da sala, não conseguia fazer as lições direito. Todos aqueles fantasmas da solidão e rejeição voltavam à tona, era um inferno térreo, e um ciclo abusivo que me fazia sentir tão melhor quanto pior. Ser amiga delas, significava ter companhia, ser alguma coisa, ter alguém pra conversar, contar piadas, etc. Mas também significava fazer uma série de coisas que eu não queria fazer para não perder o posto. Claro que crescemos, e mantenho contato com muitas delas, as amo profundamente, e hoje sei que criança em fase de crescimento é foda! Não as culpo por nada disso, na verdade, não estou aqui para culpar ninguém.

Cada um passou por dores e delícias por ser quem é, mas eu realmente acredito que não é justo ou necessário que algumas pessoas carreguem fardos mais pesados por serem mais tímidas, recatadas, ou qualquer traço de personalidade ou mesmo físicos que tenham. Viver em sociedade é um aprendizado mesmo, e na escola temos um convívio social mais intenso e aprendemos a lidar com as mais diversas situações, e toda essa vivência com certeza também moldou minha visão política de educação, pois poderíamos ter ambientes mais saudáveis e acolhedores, em que toda diversidade fosse compreendida e respeitada.


"O desejo do homem é a mulher. O desejo da mulher, é o desejo do homem"
Durante um certo tempo, tentei expressar mais feminilidade do que eu realmente gostaria, mas logo depois voltei a me esconder. Um grande ídolo da minha adolescência era a Dita Von Teese, no auge do meu interesse por pin-ups. “Ok, se eu sou uma mulher, eu sou ser tudo o que uma mulher deveria ser”. Ela era sexy, estilosa, educada, tímida e ousada ao mesmo tempo. A clássica dama na rua e puta na cama. Altamente desejável (tudo o que somos ensinadas a almejar ser), e muito rica.


O que mais, como mulher, eu poderia desejar? 
     
Na mesma época eu comecei a ler alguns romances do século XIX, onde uma mulher de verdade deveria saber dançar, tocar piano, bordar, ter hábitos de leitura, e outras coisas mais que também se adequavam aos padrões salomaníacos. Mas isso também não me contemplava. Eu não gostava dos olhares famintos, nem dos sapatos desconfortáveis. Me sentir desejada era bom pro ego, mas custava  não ter minha voz ouvida. Ter minha presença notada, e minhas ideias ignoradas. A sensação de poder se esvaía ao primeiro elogio objetificante. Era uma bosta. Independente disso, tinha algo de bom naquilo sim, era uma estética que me atraía, mas não em sua totalidade.

Tempos depois percebi que tinha grande interesse por androginia. Sempre amei as roupas masculinas, achava o máximo mulheres vestidas como homens de negócios. Intimidadoras, misteriosas, pareciam mais inteligentes e livres de padrões. Era isso que eu queria ser. 

Eu queria me sentir bem no meu corpo feminino, mas ser ouvida, vista e respeitada como um homem. 

Mas não importa o que eu fazia, sempre parecia ter algo errado. Ao mesmo tempo que eu almejada ter seios maiores, eu queria que eles não existissem. Ao mesmo que tempo que achava bonito ter quadris largos e cintura fina, eu achava que ter um corpo magro e sem formas seria mais aceitável. Ao mesmo tempo que isso me causava um desconforto desesperador, eu achava fútil pensar nessas coisas. Mas como não ser fútil se nasci mulher? Mulheres são fúteis afinal. Ser mulher é uma droga.

Seria possível usar cabelo e roupas masculinas, gostar de maquiagem e divas pop, liderar uma banda e ocupar espaços de liderança no trabalho, gostar de filmes de ação e comédias românticas, ser casada com um homem, mas me sentir atraída por mulheres, gostar de alguém, mas não querer me envolver fisicamente com essa pessoa, e ainda assim, estar inflamada de desejo e prazer quando EU DECIDO me envolver sexualmente com alguém. Ser uma pessoa espiritualizada e gostar de ciência. Gostar de sair e dançar e não gostar de bebidas alcoólicas, ser tímida, criativa, idealista, e todas as tantas coisas que eu sou. Eu sou um ser muito mais complexo do que qualquer estereótipo que qualquer um desses “rótulos” sugiram.


Nós somos assim. Porque somos pessoas. Mulheres são pessoas.


Homens são pessoas. Bissexuais, Héteros, Homos, Demis, whatarever, SÃO PESSOAS. Cristãos, umbandistas, ateus, agnósticos, espíritas, islãs, insira aqui qualquer religião ou manifestação de fé e espiritualidade, adivinhe – SÃO PESSOAS. Emos, punks, góticos, funkeiros, qualquer pessoa que esteja em qualquer cena ou que não esteja em nenhuma, são pessoas. 

E com isso não quero dizer #somostodomacacos, porque isso é o cúmulo da falta de consciência política e de classe, mas porra, é um saco de bosta ter que ficar pedindo permissão ou dando satisfações pra ser quem a gente é, em uma sociedade que não dá a mínima! O que esses rótulos em si dizem sobre o que realmente somos, em nosso âmago? E porquê isso influencia a maneira com que somos vistos ou tratados? Especialmente como mulher, somos sempre muito santas, muito putas, muito agressivas, muito submissas, muito mandonas, muito dadas, muito retraídas, muito sem sal, intensas demais, nunca completas, nunca somos algo o suficiente, ou o somos demais. O tempo todo, eu só queria poder me expressar de maneira plena sem ser vista como um bug no sistema, e graças a Deus, pude encontrar isso no exercício da minha espiritualidade e na arte, que sempre foi um lugar para chamar de casa. Mas sei muitas pessoas não tiveram e não tem a sorte que eu tive. E independente das minhas crenças morais de certo e errado, eu oro por um mundo onde as pessoas não precisem passar por esse sofrimento.

Algumas coisas eu ainda não me sinto à vontade dizer, e é claro que essa é a minha visão dos fatos, narrado em primeira pessoa e, ainda sim, é só um pequeno fragmento no meio de tantas memórias. Há tempos queria dizer essas coisas, contar um pouco da minha história sem a pretensão de gerar qualquer tipo de comoção, porque ainda me reconheço como tendo a narrativa de uma pessoa privilegiada. Não encaro meu passado com remorso, certamente gostaria de ter a autoestima e maturidade que tenho hoje, tudo seria muito diferente. Minha dor é justamente sobre aqueles que sentiram e sentem essa mesma dor e solidão que eu, a mesma sensação de não conformidade, o mesmo sentimento confuso e inexplicável de estar em outra frequência, o mesmo não pertencimento... Eu oro por vocês, e eu penso em vocês a cada linha que eu escrevo, a cada nota que eu canto e componho, eu desejo com cada célula do meu corpo que suas vidas sejam cheias de amor, e que todo sofrimento e escuridão se transformem em arte, em algo belo, que essas vozes enlouquecedoras se calem, e que vocês possam ser livres.

Desejo fervorosamente que minha arte seja como uma mão estendida, que seja consolo, um colo e um abraço, como a arte de tantas pessoas foi pra mim.
É por isso que eu vivo, é por isso que eu escrevo, e é por isso que eu canto. Essa é a minha luta. É tudo o que há de melhor e mais precioso em mim.

Por algum motivo, eu senti necessidade de externar esses pensamentos hoje. E espero que isso tenha algum impacto positivo pra alguém. Hoje eu me sinto um pouco menos sozinha, e um pouco mais feliz em ser quem eu sou. De ajustes todos precisamos, mas de sermos livres pra expressarmos nosso ser, também.

Com amor,
HANEY

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