PROVOCAÇÕES SOBRE IDENTIDADE VOCAL

Cantando com a banda Luminária no Teatro Viradalata - Glocal 22/05/18
Muitas vezes ouvimos falar sobre a sonhada “identidade vocal”, mas já parou pra pensar no que isso significa exatamente? Como conquistá-la? Como se identifica um cantor que tem “identidade”?


Recentemente, postei um vídeo cantando a música tema de “Smallville” (“Save Me” da banda RemyZero), e muitas pessoas ficaram surpresas em como eu usei a voz de forma totalmente diferente do que estão acostumados a ouvir. Muitos elogiaram e acharam impressionante a forma como soei parecido com o cantor original, outros questionaram o fato de eu não ter dado “a minha identidade” para a música, e disseram que eu deveria ter cantado com “a minha voz”.

    Você pode assistir ao vídeo AQUI. Com a banda Luminária no Movemente "B vs S" - 17/06/18

Vamos lá, porque aquela não seria “a minha voz”? Não era eu executando o ajuste? Não era uma voz saindo de mim? Você pode dizer “ok, mas você estava tentando imitá-lo”. Como aprendemos a falar? Não estaríamos nós imitando as pessoas ao nosso redor? A criança baiana não adquire sotaque “baiano” porque ouve as pessoas falando dessa maneira? Então o sotaque dela não é dela, é uma imitação? O que é natural e o que é construção social, vocalmente falando?             

Eu acho curioso, que no processo de aprendizado de qualquer habilidade, principalmente artística, temos uma ordem mais ou menos pré-definida:      

TÉCNICA BÁSICA – BUSCA DE REFERÊNCIAS – ADAPTAÇÃO – APERFEIÇOAMENTO TÉCNICO PARA REPRODUÇÃO - RELEITURA – “INTERPRETAÇÃO/CRIAÇÃO”

Claro que a ordem dos fatores varia, mas você não chega numa aula de guitarra, por exemplo, já colocando sua identidade nas músicas. A princípio, você precisa conhecer o instrumento, saber a função de cada peça, saber como funcionam as escalas, como pegar no instrumento, princípios de digitação, palhetada, etc. Depois você vai fazer exercícios e pegar músicas simples para entender melhor a dinâmica/mecânica da coisa. É preciso muito estudo, até você chegar no nível de dar sua própria interpretação para algo. E quanto maiores suas referências, mais ricas serão suas criações, maiores suas possibilidades de alargamento técnico/estético. Você não chega na aula do zero, querendo dar “a sua cara” para uma música do Steve Vai. Seu primeiro objetivo é tirar aquele solo. Entender a técnica e o significado musical por trás daquilo. Por que com voz nós achamos que tem que ser diferente?

Por que antes mesmo de aprendermos como nosso instrumento funciona, de termos referências, conhecermos possibilidades e nos ajustarmos de maneira tecnicamente saudável, queremos ter a famigerada “identidade”?

Qualquer músico que leva o ofício minimamente a sério tem suas “metas musicais”, tirar um solo, tirar uma frase, tocar com perfeição uma música daquela banda que admira e que credita ser algo difícil de se executar. Mas e nós, os vocalistas, quais nossos objetivos musicais nos nossos estudos e crescimento como cantores? Que nova técnica você gostaria de aprender? Seria um pecado querer aprender técnicas novas, porque isso não seria “natural”? Então estamos condenados a cantar apenas e tão somente de acordo com as configurações musculares que adquirimos antes das aulas de música? E essas configurações, são ou não “naturais”? Aulas de técnica vocal então servem apenas para aperfeiçoarmos o que já fazemos “naturalmente”? Será que nossa “identidade” não seria um conjunto de possibilidades estéticas que adquirimos e escolhemos ao longo da vida? Se adquirimos, isso não quer dizer que podemos adquirir possibilidades/modelagens musculares novas? Se você soubesse que pode aprender aquele ajuste incrível que seu cantor favorito faz, seria errado você querer aprender a fazer e usá-lo da sua forma? De que maneira podemos ter também uma melhora na nossa técnica e alargamento de possibilidades estéticas, sem buscar referências e reproduzir os mais diversos ajustes? E se a própria fala em si fosse também uma construção social, baseada na reprodução de sons? 

Vejo muitos cantores iniciantes com “complexo de Rockstar” – ou só um pouco mal orientados - , cheios de vícios e maus hábitos, declarando que “essa é a identidade deles”. Sempre defendo que podemos fazer qualquer escolha estética, desde que seja minimamente consciente. O ideal é que você faça algo porque gosta e escolheu fazer, e não porque não consegue fazer de outra forma. Deixo claro aqui, que me refiro a cantores que pretendem se profissionalizar e levar seus estudos a sério. Qualquer pessoa pode cantar da maneira que quiser, mas não acho justo alguém deixar de cantar porque não soa como gostaria. E é aqui que nós, profissionais da voz entramos. Costumo dizer também para meus alunos que eles não precisam de mim para “cantar do jeito deles”, mas estou aqui justamente para guia-los na descoberta de “outros jeitos”, aumentando seus limites.

Há pouco tempo conversei com um amigo e colega de profissão, e chegamos à conclusão que cada ajuste vocal é como uma cor, e a música é como uma tela. Identidade é poder ter a segurança de saber que você tem as cores que deseja para pintar essa tela da maneira que preferir, no lugar de estar frustrado porque sabe que, por falta de cores, seu quadro nunca ficará da maneira que você realmente deseja. Se você está feliz com três cores ótimo! Podemos fazer desenhos magníficos com apenas uma! Mas se o que você deseja é ter essa ou aquela cor para poder usá-las, e até misturá-las para obter cores novas, saiba que isso é totalmente possível e que não é errado!

Baseado no conceito de voz natural, eu seria uma cantora extremamente frustrada, uma vez que cresci achando que minha voz não era “boa” pra cantar rock, e que eu minha voz combinava melhor com gêneros musicais mais suaves, como pop e mpb. Nunca passou pela minha cabeça conseguir fazer drives vocais, ou aprender ajustes de grandes cantoras como Beyoncé, Alicia Keys, Pink, etc etc, coisas que com o tempo aprendi, e ainda estou aprendendo. Digo sempre que hoje, canto muito melhor do que imaginei que poderia, embora ainda esteja longe de chegar aonde desejo, mas procuro estar sempre caminhando.

Fica aqui minha provocação como cantora e professora de Técnica Vocal. Seguimos na luta para compreendermos cada vez melhor a voz e desmitificar conceitos que, mesmo que amplamente disseminados, podem ser extremamente falsos e limitadores.               
E você, o que pensa sobre “identidade vocal”?


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